terça-feira, 23 de julho de 2013

Consciência cósmica

Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do remoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim...

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado...

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
e deveria rir, se me restasse o riso,
das tormentas que poupam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo...

Magma - JGR


O livro Magma ficou por 60 anos sem ser publicado e ganhou o status de lenda. Conhecido por poucos, inacessível a muitos, tinha a existência clandestina. Apesar de ter ganhado, em 1936, o Prêmio da Academia Brasileira de Letras, o livro sempre foi considerado uma obra menor pelo autor. Durante sua vida, Guimarães Rosa não demonstrou qualquer interesse em publicá-lo, chegando a dizer em entrevista: "[...] escrevi um livro não muito pequeno de poemas, que até foi elogiado. [Depois] passaram-se quase dez anos, até eu poder me dedicar novamente à literatura. E revisando meus exercícios líricos, não os achei totalmente maus, mas tampouco muito convincentes". Assim, só muitos anos após a morte de seu autor, em 1997, é que Magma veio a público.

Segue o discurso proferido por Guimarães Rosa em agradecimento ao prêmio concedido pela Academia Brasileira de Letras, ao livro de poesia Magma.

"O poeta não cita: canta. Não se traça programas, porque a sua estrada não tem marcos nem destino. Se repete, são idéias e imagens que volvem à tona por poder próprio, pois que entre elas há também uma sobrevivência do mais apto. Não se aliena, como um lunático, das agitações coletivas e contemporâneas, porque arte e vida são planos não superpostos mas interpenetrados, com o ar entranhado nas massas de água, indispensável ao peixe — neste caso ao homem, que vive a vida e que respira arte. Mas tal contribuição para o meio humano será a de um órgão para um organismo: instintiva, sem a consciência de uma intenção, automática, discreta e subterrânea.

Com um fosso fundo ao redor de sua turris ebúrnea, deixa a outros o trabalho de verificarem de quem recebeu informações ou influências e a quem poderá ou não influenciar.

E o incontentamento é o seu clima, porque o artista não passa de um místico retardado, sempre a meia jornada. Falta-lhe o repouso do sétimo dia. Não tem o direito de se voltar para o já-feito, ainda que mais nada tenha por fazer.

A satisfação proporcionada pela obra de arte àquele que a revela é dolorosamente efêmera: relampeja, fugaz, nos momentos de febre inspiradora, quando ele tateia formas novas para exteriorização do seu magma íntimo, do seu mundo interior. Uma tortura crescente, o intervalo de um rapto e um quase arrependimento. Pinta a sua tela, cega-se para ela e passa adiante. Se a surdes de Beethoven tivesse lhe trazido a infecundidade, seria um símbolo. Obra escrita — obra já lida --- obra repudiada: trabalhar em comeias opacas e largar o enxame ao seu destino, mera ventura de brisas e de asas.

Tudo isto aqui vem tão somente para exaltar a importância que reconheço ao estimulo que me outorgastes. Grande, inesquecível incentivo. O Magma, aqui dentro, reagiu, tomou vida própria, individualizou-se, libertou-se do seu desamor e se fez criatura autônoma, com quem talvez eu já não esteja muito de acordo ,mas a quem a vossa consagração me força a respeitar. Sou-lhe grato, principalmente, pelo privilégio que me obteve de poder --- sem demasiadas ilusões, mas reverente --- levantar a voz neste recinto, como um menino que depõe o seu brinquedo na superfície translúcida de uma água, para a qual a serenidade não é a estagnação, e cujo brilho da face viva nada rouba à projeção poderosa da profundidade (...)."



(Revista da Academia Brasileira de Letras, anais de 1937, ano 29, vol 53, p. 261-263)

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